Sois filhos todos vós do Deus Altíssimo!
E, contudo, como homens morrereis,
Caireis como qualquer dos poderosos!
Levantai-vos, ó Senhor, julgai a terra,
Porque a Vós é que pertencem as nações! (Sl 81,6-8)
Um
velho preconceito faz repetir que “decisão judicial não se discute, cumpre-se”.
Tal bordão, na verdade, oculta dois pressupostos falsos e consequentemente
perniciosos. O primeiro é o de que, acima dos tribunais humanos, não existe
outra instância a que se possa apelar. Este primeiro pressuposto envolve,
portanto, um ateísmo ao menos prático e também algo que podemos chamar
de estatolatria, na medida em que
reclama para os órgãos do estado uma obediência incondicional que só o mesmo
Deus teria o direito de exigir. O segundo dos pressupostos é a tese kelseniana,
tirada do direito talmúdico e não do direito romano, de que as normas, entre as
quais se compreendem as sentenças e ordens judiciais, são simplesmente
produzidas por um ato da vontade e,
como tais, não podem ser julgadas pela razão. Como diria Michel de Montaigne, o
pai do cepticismo moderno, «Les lois se
maintiennent em crédit non parce qu’elles sont justes, mais parce qu’elles sont
lois» (Essais, l. III, c. XIII).
Ocorre
que as normas, sejam elas gerais como as leis ou concretas e individuais como
as constantes de contratos ou sentenças judiciais, são, em sua essência, atos da razão prática, juízos prudenciais, que podem ser mais
ou menos corretos. De outra forma, não seria inteligível o princípio da
fundamentação das decisões judiciais, insculpido no art. 93, IX, da
Constituição Federal, que obriga mesmo o Supremo Tribunal Federal, instância
máxima do poder judiciário brasileiro. Ainda que não sejam vinculantes os
motivos da decisão, nem seja por seu valor que a decisão tenha força
coercitiva, pela exigência da fundamentação a Constituição de certo modo
submete os pronunciamentos judiciais ao julgamento (ao menos intelectual e
moral) do público, que em muitos casos louvará o magistrado pelo brilho de sua
prudência (ou melhor, jurisprudência)
e em outros, oxalá sejam poucos, lamentará seus desatinos. O que importa
considerar é que a liberdade de discutir
as decisões judiciais é um direito decorrente do próprio princípio
constitucional que impõe a sua fundamentação. Como todo e qualquer direito, não
deve ser exercido anarquicamente, mas com ordem.
Por
outro lado, do fato de serem juízos prudenciais as normas das leis humanas e
das sentenças judiciárias não se segue que se possa desobedecer a elas quando
parecerem imprudentes ou mesmo quando houver soluções mais prudentes. A lei é
uma regra de prudência, mas não é
prudente apartar-se da lei, ainda quando ela for manifestamente imprudente,
salvo em casos excepcionalíssimos, como os apontados pelo grande pontífice Leão
XIII: «Seria crime negar obediência a Deus para dá-la aos homens; seria delito
infringir as leis de Jesus Cristo para obedecer aos magistrados, ou violar os
direitos da Igreja sob pretexto de guardar as leis de ordem civil. “Importa
obedecer mais a Deus do que aos homens” (At 5,29). Essa resposta que outrora
costumavam dar Pedro e os demais apóstolos aos magistrados, quando lhes
ordenavam coisas ilícitas, devemos repeti-la todos os dias muito resolutamente
em circunstâncias iguais» (enc.
Sapientiae Christianae, n. 11).
A questão
do momento é o recente acórdão do Superior Tribunal de Justiça que, por votação
unânime, condenou o padre Luiz Carlos Lodi, conhecido batalhador da luta pela
defesa da vida no Brasil, a pagar indenização no valor de R$ 60.000,00 por
haver, no ano de 2005, acionado o poder judiciário a fim de impedir um aborto.
A decisão, mais que injusta, é duplamente absurda: em primeiro lugar, porque o
padre não foi responsabilizado por um ato material que impediu ou perturbou o
cumprimento de uma ordem judicial, como parece fazer crer o título da notícia
veiculada sobre o caso no sítio eletrônico do STJ, mas por ter ajuizado uma ação. Por um segundo
aspecto, porém não menos grave, a decisão é também absurda porque o aborto
contra o qual o padre propôs a ação é tipificado como crime, não apenas na época do ajuizamento, como igualmente ainda
hoje, de acordo com o sentido textual da lei penal. Efetivamente, no caso, a
criança nascitura havia sido diagnosticada com a síndrome de body stalk, a qual não está prevista nas
dirimentes (causas de isenção de pena) do art. 128 do Código Penal, nem
autoriza a prática do aborto segundo o acórdão da famigerada ADPF n. 54, pelo
qual o Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional o entendimento de que o
aborto em caso de anencefalia do nascituro constitui fato típico, julgamento
que foi prolatado apenas em 2012, portanto sete anos depois do fato pelo qual o
padre Lodi foi condenado.
A
condenação do padre Lodi foi fundamentada na teoria do abuso do direito, sistematizada pelo jurista francês
Louis Josserand e chamada pelo desembargador Vieira Ferreira de “extravagante
invento” e “anárquica instituição” (Código
Civil Annotado, Rio de Janeiro, 1922. pp. LVIII-LIX), que infelizmente
tornou-se dominante na doutrina nacional e recebeu consagração final no art.
187 do Código Reale. Tal instituto contribui para dilatar a discricionariedade
judicial, permitindo a criação de limites não previstos na lei aos direitos dos
particulares. Observando com atenção, falar-se de abuso de direito constitui autêntico oximoro, tal como se diria de
um círculo quadrado ou de uma reta curva. O direito romano, nesse
ponto, era mais singelo, pois a ninguém responsabilizava pelo dano que a outrem
resultasse do exercício do seu direito: qui
jure suo utitur nemini facit injuriam (cf. D. 50,17,151).
Segundo o
acórdão do STJ, o padre Lodi abusou de seu direito de ação ao pedir medida
judicial contra o aborto de criança com síndrome de body stalk porque avançou sobre direito alheio para impor suas
particulares convicções religiosas sobre o aborto. Nas palavras do sexto
parágrafo da ementa: «Nessa linha, e sobre a égide da laicidade do Estado,
aquele que se arrosta contra o direito à liberdade, à intimidade e a disposição
do próprio corpo por parte da gestante, que busca a interrupção da gravidez de
feto sem viabilidade de vida extrauterina, brandindo a garantia constitucional
ao próprio direito de ação e à defesa da vida humana, mesmo que ainda em
estágio fetal e mesmo com um diagnóstico de síndrome incompatível com a vida
extrauterina, exercita, abusivamente, seu direito de ação».
Destaca-se,
já na primeira observação, a manipulação argumentativa que esvazia o direito à
vida do nascituro, logo reduzido a “particular convicção religiosa”, enquanto
que o aborto de uma criança com síndrome de body
stalk, que era fato típico como o é ainda hoje, vai recebendo a roupagem de
“direito” ferido pela medida judicial proposta pelo padre.
A invocação
do Estado laico é aí totalmente impertinente, prestando-se apenas para desviar
a atenção. A questão sobre a licitude do aborto é antes de tudo uma questão
moral e aparentemente os prolatores do acórdão não sabem distinguir um
argumento moral de um argumento religioso. A reprovabilidade moral do aborto
independe de qualquer posicionamento em relação à religião. Como um amigo já
disse antes de mim, para ser contra o aborto não é preciso ser católico ou
professar esta ou aquela crença religiosa. Para ser contra o aborto basta ser
gente, isto é, ser uma pessoa humana na definição aristotélica de animal
racional. Os que dizem que são a favor da legalização do aborto porque não são
católicos, mais coerentes seriam se dissessem: “Eu não sou gente, por isso
defendo o aborto”.
Não é das
leis humanas, em última análise, que deriva o respeito à vida das pessoas, o
qual, mais que um direito, é um dever da humana criatura e uma condição para a
realização do progresso da cultura e da sociedade. Não obstante, a Constituição
brasileira o consagra no caput de seu
art. 5º, sem outra limitação que a do inc. XLVII, “a”, que autoriza a pena de
morte no caso de guerra declarada. Em tempo de paz, nem mesmo o pior dos
assassinos pode, no Brasil, ser privado de sua vida. Terá este mais dignidade
humana que o feto que mal não fez a ninguém? Quem são esses humanistas que veem
tanta dignidade no marginal e nenhuma na criança por nascer?
O preceito constitucional
protetivo do direito à vida, como as demais liberdades e direitos reconhecidos
e assegurados pelo art. 5º da Constituição, devem ser interpretados segundo a
sua maior amplitude, não apenas em razão do velho brocardo «odiosa restringenda, favorabilia amplianda»,
como também por força do § 2º do mesmo artigo, que ademais recepciona os
tratados internacionais ratificados pelo Brasil, entre os quais a Convenção
Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), cujo art.
4º estipula que o direito à vida deve ser protegido pela lei desde o momento da
concepção.
Conforme a
lição de Ylves José de Miranda Guimarães, «O direito à vida, como direito
primeiro e fundamental dos demais e sem o qual estes seriam de todo
inoperantes. Garantido, em ordem constitucional, o direito à vida, este há de
ser respeitado em toda a legislação ordinária, infraconstitucional, sob pena de
inconstitucionalidade e de consequente anulabilidade. E há de ser garantido
desde a concepção, pois é pacífico cientificamente que a vida tem aí a sua
gênese, ou melhor, é transmitida (...). O zigoto é rigorosamente um novo ser da
espécie humana que se desenvolve paulatinamente, conforme o modelo genético que
a caracteriza e faz parte de sua estrutura. O embrião é, pois, um corpo
vivente, com individualidade e dignidade de ser humano pessoal (...). De acordo
com esta noção, o nascituro é em si mesmo uma pessoa diferente do pai e da mãe,
e assim sujeito de direitos naturais e inalienáveis, que devem ser reconhecidos
e tutelados, como foram pelo preceito constitucional que veda,
consequentemente, o nefando crime de aborto, por quaisquer de suas espécies
provocadas, inclusive o chamado “terapêutico”» (Comentários à Constituição – Direitos e Garantias Individuais e
Coletivas, Rio de Janeiro, 1989. pp. 16-7).
Não há,
pois, no sistema jurídico brasileiro, um direito ao aborto. O que há são as
dirimentes do art. 128 do Código Penal, que isentam de pena o aborto (mas não o
justificam) em dois particularíssimos casos, e a decisão da ADPF 54, em que o
STF, ao arrepio do sentido autêntico da Constituição, excluiu da tipicidade o
aborto praticado em caso de anencefalia fetal. Ocorre que a mencionada ADPF foi
julgada apenas em 2012, sete anos depois, portanto, dos fatos pelos quais o padre
Lodi foi condenado.
Ademais,
ainda que se conceda que o STF não contraveio a Constituição ao excluir a
tipicidade do aborto em caso de anencefalia, não se pode imputar ao padre Lodi
a prática de abuso do direito de ação porque a própria Lei n. 9.882/1999, que
regula o processo da ADPF, estabelece que o ajuizamento dessa ação pressupõe relevante controvérsia constitucional,
especialmente para leis, como o Código Penal, anteriores à Constituição de
1988. Ou seja, antes do julgamento da ADPF 54, em 2012, não se poderia dizer,
como fez o acórdão que condenou o padre Lodi, que havia com certeza um direito
ao aborto em caso de inviabilidade da criança, pois o próprio processamento da
referida ADPF indicava a existência de profunda
controvérsia sobre o assunto. E tanto a matéria era controversa que o
Tribunal de Justiça de Goiás concedeu a liminar pedida pelo padre Lodi para
impedir o aborto. Como pode haver abuso de direito quando se provoca o
Judiciário a pronunciar-se sobre matéria juridicamente controversa?
Por outro
lado, no que toca ao abuso do direito de ação, a jurisprudência nacional é
uníssona em exigir, para a sua caracterização, a demonstração do dolo ou má-fé
do responsável. Entretanto, apesar de discorrer extensamente sobre os alegados
sofrimentos do casal que foi impedido de praticar o aborto, o acórdão do STJ,
que condenou o padre Lodi, é completamente omisso
em relação aos elementos fácticos que comprovariam sua má-fé ou dolo, ou ainda
a sua culpa (negligência, imprudência ou imperícia). O acórdão analisa
detidamente os danos provocados pelo suposto abuso de direito e o respectivo
nexo causal, mas passa em silêncio sobre o dolo ou culpa do réu. O padre Lodi
foi condenado por responsabilidade objetiva!
Dando uma
interpretação latíssima à decisão da ADPF 54, o acórdão que condenou o padre
Lodi pretende haver introduzido no direito brasileiro um novo requisito para a
aquisição da personalidade civil, não previsto na lei: a viabilidade. Aliás, um
dos títulos do acórdão é explícito no intento de ampliar o alcance da decisão
da ADPF 54, dizendo literalmente: «a
extensão do entendimento da ADPF 54 a outros casos de má-formação fetal que
inviabilizam a vida extrauterina». No entanto, a opinião comum e constante
da doutrina é a de que a legislação brasileira rechaçou a viabilidade como
requisito para a aquisição da personalidade civil. Segundo o magistério de
Washington de Barros Monteiro, «A lei civil pátria afastou as questões
relativas à viabilidade e forma humana. Se a criança nasceu com vida, tornou-se
sujeito de direitos, ainda que a ciência a condene à morte pela precariedade de
sua conformação. Viável ou não, o infante reveste-se de personalidade» (Curso de Direito Civil 1 – Parte geral,
39ª ed., São Paulo, 2003. p. 65). E também Maria Helena Diniz, «O nosso Código
Civil afastou todas essas hipóteses, que originavam incertezas, dúvidas, pois,
no seu art. 2º não contemplou os requisitos da viabilidade e forma humana,
afirmando que a personalidade jurídica inicia-se com o nascimento com vida,
ainda que o recém-nascido venha a falecer instantes depois» (Curso de Direito Civil Brasileiro 1 – Teoria
geral do direito civil, 21ª ed., São Paulo, 2003. pp. 179-80).
Para
completar a série de disparates, o acórdão que condenou o padre Lodi invocou um
direito inexistente no sistema jurídico brasileiro: “o direito à disposição do
próprio corpo”. Pelo contrário, o direito ao corpo é um direito da
personalidade, logo intransmissível, irrenunciável e indisponível. Além disso,
o art. 13 do Código Civil proíbe os atos de disposição do próprio corpo, salvo
por exigência médica, e o art. 14 os permite apenas para depois da morte, desde
que a título gratuito. O art. 199, § 4º, da Constituição, por sua vez, veda
expressamente a comercialização de órgãos, tecidos ou substâncias humanas. Além
do que, é claro, o corpo da criança não faz parte do corpo da mãe, mesmo
vivendo dentro do útero.
No fundo, o
que parece é que o acórdão que condenou o padre Lodi intentou menos indenizar o
casal ou mesmo perseguir individualmente o sacerdote do que intimidar qualquer pessoa que acione o
Judiciário contra a realização de aborto. O segundo dos títulos do acórdão
é bastante explícito quanto a isso: «Da possibilidade de responsabilização de
pessoa que faz uso de remédio constitucional para sustar a interrupção de
gravidez judicialmente autorizada». O acórdão abre um precedente
nefasto para sujeitar qualquer pessoa que simplesmente pedir uma medida judicial contra um aborto a pagar, dez anos
depois, uma elevada quantia em dinheiro.
E aqui
encerramos nosso comentário sobre essa decisão teratológica, duplamente
absurda.
Rodrigo R. Pedroso, Advogado graduado pela FD/USP. Mestre em
filosofia pela FFLCH/USP. Procurador da Universidade de São Paulo. Membro da
UJUCASP (União dos Juristas Católicos de São Paulo) e do Centro de Estudos de
Direito Natural “José Pedro Galvão de Sousa”.