quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Uma proposta de emenda à Constituição

Rodrigo R. Pedroso
             Um dos mais sérios problemas da atual configuração institucional do Estado brasileiro é a hipertrofia do Supremo Tribunal Federal como órgão de controle de constitucionalidade. Efetivamente, tem se servido o Supremo Tribunal de seu posto de guardião da Constituição, não apenas para substituir-se ao Congresso Nacional, como também, o que é muito pior, para fazer tábula rasa do próprio texto constitucional. Na prática, o STF vem esvaziando completamente o sentido objetivo das palavras da Constituição, substituindo-o pelo programa ideológico de seus onze ministros. Da mesma maneira como o positivismo legalista do século XIX fez crer ao legislador humano não haver direito algum antes da promulgação da lei positiva, também o Supremo Tribunal brasileiro parece decidir como se não houvesse, antes de sua jurisprudência, ao menos uma Constituição cujo texto tem um sentido determinado e objetivo.

            Assim ocorreu quando o STF decretou ser inconstitucional considerar fato típico criminal o aborto quando a vítima for portadora de anencefalia (ADPF 54); quando julgou ser constitucional a destruição de embriões humanos vivos para pesquisas com células-tronco (ADIn 3510); quando equiparou os pares homossexuais à união estável do art. 226, § 3º, da Constituição Federal, para fins de reconhecimento como entidade familiar (ADIn 4277 e ADPF 132).

            Nos dois primeiros casos, a decisão do Supremo Tribunal Federal foi proferida com violação a cláusulas expressas da Constituição, quais sejam, o art. 5º, caput e § 2º. Efetivamente, o caput do mencionado art. 5º garante a inviolabilidade do direito à vida, garantia que deve ser assegurada na sua maior extensão possível, em razão da diretiva hermenêutica insculpida na primeira parte do § 2º do mesmo artigo: «Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados». Tal preceito impõe que os direitos e liberdades do art. 5º da Constituição, entre os quais o direito à vida, devem ser assegurados na sua maior amplitude possível, do que decorre necessariamente a proteção da vida humana desde a sua concepção, sendo fulminada de inconstitucionalidade qualquer interpretação restritiva desse direito. Ademais, a segunda parte do mesmo § 2º recepciona os direitos e liberdades consignados nos tratados de que o Brasil seja parte, entre eles a Convenção Americana sobre Direitos Humanos ou Pacto de San José da Costa Rica, como reconhecido pela súmula vinculante n. 25 do próprio Supremo Tribunal Federal. Ora, o art. 4º do referido Pacto estipula explicitamente que o direito de todo ser humano à vida deve ser protegido pela lei e desde o momento da concepção.

            O terceiro caso é igualmente emblemático porque o STF não apenas decidiu contra a intenção do constituinte, revelada pelos debates parlamentares havidos na votação do texto constitucional, nos quais se verifica que as palavras “homem e mulher” foram incluídas no § 3º do art. 226 com o objetivo deliberado de impedir o reconhecimento dos mesmos direitos às uniões homossexuais, mas também porque o relator da ADIn 4277, ministro C. A. Britto, houve por bem dar “interpretação conforme à Constituição” ao art. 1.723 do Código Civil, que repete ipsis litteris o mencionado § 3º do art. 226 da Lei Fundamental... Ora, indiretamente, admitiu-se que o STF operou um recorte nos sentidos de uma das cláusulas da própria Constituição.

            Mais recentemente, no julgamento do HC 124.306-RJ, em sede de controle de constitucionalidade incidental, num particular caso concreto, a 1ª Turma do STF, de acordo com voto do ministro L. R. Barroso, entendeu ser inconstitucional a proibição do aborto no primeiro trimestre da gravidez por ser contrária aos seguintes direitos constitucionais: os direitos sexuais e reprodutivos, a autonomia da mulher, a integridade física e psíquica da gestante e a igualdade de gênero. O inusitado é que absolutamente nenhuma dessas expressões constam do texto literal da Constituição. Depois disso, o que o STF não poderá fazer?

            Saliente-se que o direito à inviolabilidade da vida humana, por força do art. 60, § 4º, IV, do texto constitucional, é cláusula pétrea, não podendo ser reduzido ou melindrado sequer por emenda constitucional. Ou seja, quando o STF excluiu a tipicidade do aborto em caso de anencefalia da vítima, quando sancionou a destruição de embriões humanos vivos, e também quando sua 1ª turma excluiu a tipicidade de qualquer aborto executado até o primeiro trimestre da gestação, fez exercício do próprio poder constituinte originário.

            Temos, à toda a evidência, que a hipertrofia do Supremo Tribunal Federal vai muito além de mera usurpação das atribuições do poder legislativo. Pelo contrário, o STF vem fraudando o sentido literal da Constituição, com isso usurpando o próprio poder constituinte, que se confunde com a soberania nacional e tem como titular único e exclusivo, segundo o parágrafo único do art. 1º da Carta Magna, apenas o povo brasileiro. Em outras palavras, reescrevendo a Constituição do Brasil com seu ativismo judicial, o STF não está apenas violando as prerrogativas do Congresso, mas esbulhando direitos que competem unicamente ao povo.

            Como pôr cobro a esse abuso?

            Ora, tais fatos deploráveis indicam que essa nefasta hipertrofia do Supremo Tribunal Federal reclama urgentemente uma reforma no sistema brasileiro de controle de constitucionalidade. Do jeito que está não pode continuar. Nas circunstâncias brasileiras, ficou evidente, com a experiência que recolhemos desde a redemocratização e a promulgação da Constituição de 1988, que o controle de constitucionalidade, seja na forma concentrada, seja como instância máxima da forma difusa, é muito poder para um órgão só. Se o STF é o guarda da Constituição, quis custodiet ipsum custodem? Conforme Montesquieu, o poder «va jusqu’à ce qu’il trouve des limites» (“vai até onde encontra limites” – De l’esprit des lois, l. XI, c. IV). E, sem encontrar limites, o poder do STF cresceu até empalmar o poder constituinte e a própria soberania nacional. Com efeito, no dizer de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, «a questão da titularidade do poder constituinte se liga intimamente com o problema da soberania no Estado. A ligação é uma verdade óbvia; porque é claro que, quem pode estabelecer a organização política fundamental, ou, numa palavra, quem pode estabelecer a Constituição é, obviamente, quem for o detentor do poder supremo do Estado, é quem for o soberano, soberano neste sentido de ser o mais alto detentor do poder num determinado Estado» (Direito Constitucional Comparado – O poder constituinte, São Paulo, 1974. p. 26). Nessa linha, o Brasil já é uma ditadura, uma ditadura do Supremo Tribunal Federal, uma vez que este, segundo o conceito schmittiano, decide acerca de eventuais exceções à Constituição: «Soberano é quem decide sobre o estado de exceção (...). A autoridade comprova que, para criar direito, ela não precisa ter razão/direito» (Carl Schmitt, Politische Theologie, trad. port. de E. Antoniuk, Teologia Política, Belo Horizonte, 2006. pp. 7 e 14).

            E como pôr limites a esse poder absoluto do STF? Ora, novamente segundo Montesquieu: «Pour qu’on ne puisse abuser du pouvoir, il faut que, par la disposition des choses, le pouvoir arrête le pouvoir» (“Para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder”). É preciso, portanto, para deter os abusos do Supremo Tribunal Federal no controle de constitucionalidade, que outro órgão freie seu poder. Na linha dessas reflexões, minutamos a seguinte proposta de emenda à Constituição, que gostaríamos fosse encampada pelos membros do Congresso Nacional:

Art. 1º. O art. 49 da Constituição Federal passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo único:
“Art. 49. ........................................................... 
Parágrafo único. Incumbe também ao Congresso, mas não privativamente, velar na guarda da Constituição.”
Art. 2º. É revogado o inciso X do art. 52 da Constituição Federal.

Art. 3º. O art. 97 da Constituição Federal passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo único:
“Art. 97. .............................................................
Parágrafo único. No caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de controle abstrato ou incidental de constitucionalidade, se o Congresso Nacional confirmar a lei por dois terços de votos em cada uma das Câmaras, ficará sem efeito a decisão do Tribunal.”
Art. 4º. O art. 102 da Constituição Federal passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo quarto:
“Art. 102. .............................................................. 
§4º É vedado ao Supremo Tribunal Federal atuar como legislador positivo, sendo nulas as decisões interpretativas com eficácia aditiva.”
Art. 5º. Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação.

            Tal inovação não é desconhecida na doutrina constitucional brasileira. Foi mesmo recomendada entusiasticamente por Cândido Motta Filho, insigne constitucionalista e professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo:

«A subordinação do julgado sobre a inconstitucionalidade da lei à deliberação do Parlamento coloca o problema da elaboração democrática da vida legislativa em seus verdadeiros termos, impedindo, em nosso meio, a continuação de um preceito artificioso, sem realidade histórica para nós e que, hoje, os próprios americanos, por muitos de seus representantes doutíssimos, reconhecem despido de caráter de universalidade e só explicável em países que não possuem o sentido orgânico do direito administrativo. Leone, em sua Teoría de la política, mostra, com surpreendente clareza, como a tendência para controlar a constitucionalidade das leis é um campo aberto para a política, porque a Constituição, em si mesma, é uma lei sui generis, de feição nitidamente política, que distribui poderes e competências fundamentais» (A evolução do controle da constitucionalidade das leis no Brasil, in Revista Forense 86/277).

            Mark V. Tushnet, professor de direito constitucional na prestigiosa universidade norte-americana de Harvard, também afirmou, em estudo recente, que a revisão pelo parlamento do juízo de constitucionalidade proferido pelos tribunais responde à preocupação pela garantia do processo democrático no controle de constitucionalidade das leis:

«Courts in weak-form systems have the power to evaluate all legislation to determine whether it is consistent with all of the constitution's provisions without exception. Rather, the mark of weak-form review is that ordinary legislative majorities can displace judicial interpretations of the constitution in the relatively short run. Weak-form review responds to the concern that strong-form review allows courts with an attenuated democratic pedigree to displace decisions taken by bodies with stronger democratic pedigrees» (Alternative Forms of Judicial Review, 2003, disponível in http://scholarship.law.georgetown.edu/facpub/259/ [1-12-2016]).

            Em nosso modesto entender, a possibilidade de revisão pelo Congresso Nacional dos juízos proferidos em sede de controle de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal é a única maneira de refrear seus nefastos abusos e de impedir que o sentido do texto constitucional continue sendo fraudado, como vem ocorrendo.

            Mas tal proposta não ofenderia o princípio da separação dos poderes?

            De forma alguma! Ainda que a Lei Fundamental de 1988 tenha constituído três poderes independentes e harmônicos entre si, as suas respectivas funções não são estanques. A doutrina brasileira da separação de poderes não segue o modelo francês, segundo o qual os três poderes não se comunicam, mas o modelo norte-americano, de checks and balances (freios e contrapesos), pelos quais os poderes controlam-se reciprocamente, a fim de manter o equilíbrio entre si. Assim, na França, por exemplo, o cidadão não pode acionar judicialmente o Estado, porque isso importaria numa intromissão do poder judiciário sobre o poder executivo. Segundo o modelo francês, o cidadão pode litigar com a administração pública apenas em sede de contencioso administrativo. Entretanto, tanto nos Estados Unidos, como no Brasil (art. 5º, XXXV, CF), os atos dos administradores públicos estão sujeitos ao controle judiciário, e isso não é visto como infração do princípio da separação dos poderes. E não é visto porque se considera o controle judicial dos atos administrativos uma boa maneira de usar o poder judiciário para limitar eventuais abusos do poder executivo, impedindo que este usurpe a própria soberania nacional e se converta de fato em ditadura, isto é, em poder sem limites.

            Destarte, a fim de que se possa manter o equilíbrio e o controle recíproco entre os três poderes constituídos, estes não apenas exercem as suas funções típicas (as que guardam relação de identidade com o poder que as exercitam), como também funções atípicas (que seriam típicas dos outros poderes). Conforme a lição de Rosah Russomano:
«Insinuando-se em nossa organização a teoria dos “freios e contrapesos”, naturalmente, os poderes em foco controlam-se reciprocamente, evitando as demasias possíveis. Ao mesmo tempo, cada órgão não tem a exclusividade da função que lhe imprime a designação própria» (Curso de Direito Constitucional, São Paulo, 1970. p. 254).

            Nessa linha, o poder legislativo tem como típica a função legislativa, mas exerce, de modo atípico, também a função executiva, quando provê os cargos ou funções dos seus serviços (arts. 51, IV, e 52, XIII, CF), e a judiciária, quando o Senado processa e julga o presidente da República e os ministros do Supremo Tribunal Federal nos crimes de responsabilidade (art. 52, I). Por outro lado, o poder executivo exerce, de modo atípico, a função legislativa quando adota medidas provisórias (art. 62, CF); inicia projetos de lei (art. 84, III, CF); sanciona ou veta projetos aprovados pelo Congresso (art. 84, IV, CF).

            Aliás, de certo modo, poderíamos dizer que o próprio controle de constitucionalidade é uma função atípica do poder judiciário. Efetivamente, segundo o entendimento do pai do controle concentrado de constitucionalidade, o jurista austríaco Hans Kelsen, o tribunal constitucional, quando declara inconstitucional determinada lei, está se comportando como legislador negativo (cf. Chi dev’essere il custode della costituzione, in La giustizia costituzionale, Milano, 1981. p. 236). Quando propôs a instituição do controle concentrado de constitucionalidade, Kelsen estava advogando a partilha da função legislativa do Estado entre dois órgãos: um legislador positivo (o parlamento) e um legislador negativo (o tribunal constitucional) – cf. La garanzia giurisdizionale della costituzione, in La giustizia costituzionale, Milano, 1981. p. 173. Ora, se o Supremo Tribunal Federal, ao exercer jurisdição constitucional em última instância, comporta-se como legislador negativo, nada mais natural que conferir ao próprio poder legislativo uma participação no exercício dessa atividade.

            A doutrina constitucional brasileira vê a separação de poderes como um jogo que distribui entre os três poderes constituídos funções típicas e atípicas, arranjadas de tal forma que nenhum deles tenha a supremacia sobre os outros, o que equivaleria à ditadura e à usurpação da soberania nacional, cuja titularidade permanece no povo. Para que os três poderes sejam independentes e harmônicos, como reza o art. 2º da Constituição, importa que nenhum deles seja soberano. A atribuição do poder de interpretar definitivamente a Constituição de forma exclusiva a um órgão não eletivo, como é o Supremo Tribunal Federal, desequilibra o jogo entre os três poderes e, na medida em que permite ao STF atribuir à Constituição sentidos que lhe são completamente estranhos, revela-se contraproducente, pondo em risco o próprio valor que se pretende garantir pelo controle de constitucionalidade, isto é, a supremacia do texto constitucional.

            Não se poderá dizer que nossa proposta simplesmente desloca a supremacia, que não deveria ser do Supremo Tribunal Federal, para o Congresso Nacional. Com ela, não se retira ao poder judiciário a prerrogativa de apreciar a compatibilidade das leis com a Constituição, nem é prejudicada a competência do STF como órgão de controle abstrato e recursal. Pelo contrário, nossa proposta visa a aperfeiçoar o sistema de controle de constitucionalidade, reduzindo os riscos tanto da soberania judicial como da soberania parlamentar. Uma lei manifestamente contrária à Constituição continuaria podendo ser invalidada pelos juízes e tribunais. Entretanto, o Supremo Tribunal Federal seria desincentivado a adotar posturas mais ativistas, uma vez que decisões inusitadas poderiam perder sua eficácia por ato do Congresso. Para tanto, todavia, seria necessário um quórum qualificado de ambas as casas legislativas, de modo que a confirmação de leis declaradas inconstitucionais não se faria por maiorias parlamentares ocasionais, sem um amplo respaldo popular e social.

            Em outras palavras, nossa proposta colima encontrar um ponto de equilíbrio entre os papéis do legislador e dos tribunais na interpretação da Constituição, possibilitando um diálogo mais intenso entre os poderes constituídos do Estado. Visa também a impedir que o Supremo Tribunal Federal se isole da sociedade, sem se comunicar com os demais poderes e com o próprio povo, proferindo decisões arbitrárias e nefastas que podem afetar toda a Nação. Permite igualmente que outros atores, fora do Judiciário, atuem como protagonistas da interpretação constitucional e do controle de constitucionalidade das leis, num sentido que se aproxima do preconizado por Peter Häberle em A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição.

            Nosso argumento fundamental é que o Supremo Tribunal Federal, embora deva exercer um papel relevante no controle de constitucionalidade e na interpretação da Constituição, não deve possuir a prerrogativa de ditar a última palavra sobre a matéria. Essa prerrogativa faz com que o STF, órgão que não é constituído democraticamente nem presta contas ao povo, torne-se o único juiz de seus próprios limites, abrindo-se caminho para que seja fraudado o sentido mesmo do texto constitucional. É necessário que outro poder constituído, o órgão da representação nacional, limite o poder do STF no exercício do controle de constitucionalidade. Este é, segundo nossa modesta opinião, o caminho para se restaurar a efetividade dos sentidos objetivos do texto constitucional.

Rodrigo R. Pedroso, Advogado graduado pela FD/USP. Mestre em filosofia pela FFLCH/USP. Procurador da Universidade de São Paulo. Membro da UJUCASP (União dos Juristas Católicos de São Paulo) e do Centro de Estudos de Direito Natural “José Pedro Galvão de Sousa”.


quinta-feira, 10 de novembro de 2016

A ligação umbilical do preconceito com a injustiça

André L. Costa-Corrêa[1]
Em recente decisão, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça condenou, no REsp 1.467.888, em danos morais o Padre Luiz Claudio Lodi da Cruz que, em 2005, impetrou um habeas corpus para preservar o direito à vida de um feto com síndrome Body Stalk – vez que os pais haviam obtido autorização judicial para a realização de procedimento clínico de interrupção da gravidez, sob o fundamento de que deveria ser aplicada, ao caso concreto, de forma analógica, a decisão da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54, que possibilitou a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos.
Tal decisão se fundamentou na compreensão de que a impetração do habeas corpus se fez para “medrar, em seara imprópria, o corpo de valores que defende – e isso caracteriza o abuso de direito – pois a busca, mesmo que por via estatal, da imposição de particulares conceitos a terceiros, tem por escopo retirar de outrem, a mesma liberdade de ação que vigorosamente defende para si”. Compreenderam os Ministros que houve abuso de direito por parte do impetrante do habeas corpus e que tal abuso promoveu um dano moral.
O habeas corpus é, a mais de 800 anos, uma garantia “constitucionalmente” instituída para proteger ou afastar possível violência ou coação contra a liberdade ou locomoção cometida por ilegalidade ou por abuso de poder. Além disso, a Constituição Federal garante a todos o acesso ao Poder Judiciário para apreciar possível lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV), bem como assegura o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidades ou abuso de poder (art. 5º, XXXIV, “a”) e, também, o contraditório e ampla defesa (art. 5º, LV).
Assim, qualquer interessado pode propor, em nome daquele que esteja sofrendo os efeitos da ilegalidade ou do abuso de direito, um habeas corpus – como, por exemplo, por um Padre em defesa do direito à vida de um feto quando uma decisão judicial possibilite a interrupção de sua gestação face uma analogia ilegal e indevida de uma outra decisão judicial.
Então, o único abuso de direito cometido foi o promovido pela Turma do STJ que, sob o manto fundamentalista da laicidade do Estado brasileiro, puniu injustamente alguém que simplesmente exerceu uma garantia constitucional e buscou, pelo contraditório e ampla defesa, assegurar a defesa de direitos de um feto face possível ilegalidade ou abuso de poder.
A terrível dor dos pais pela perda de sua criança ou pela interrupção do procedimento clínico que anteciparia tal sofrimento não pode possibilitar a inversão dos valores democráticos e o afastamento de basilares garantias constitucionais – e falo isso após a perda de 02 gestações – porque não há indenização que recupere um dano ao Estado de Direito.
Ao condenado, a sociedade deveria dizer: Padre, perdoe os Ministros da Terceira Turma do STJ, porque eles não sabem o que fazem!



[1] Advogado, professor, conferencista e consultor em direito público. Coordenador e professor convidado do CEU-IICS Escola de Direito (SP). Professor e Pró-Reitor de graduação do UNICIESA (AM). Professor e pesquisador visitante na Brooklyn Law School. Especialista em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e pelo CEU-IICS Escola de Direito (SP). Mestre e Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Membro da Academia Paulista de Letras Jurídicas (APLJ) – cadeira 26. Membro da União dos Juristas Católicos de São Paulo, da International Fiscal Association, da Associação Brasileira de Direito Financeiro e do Conselho Superior de Direito da FECOMERCIO.

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Um absurdo judiciário

Rodrigo Rodrigues Pedroso
Ó juízes, vós sois deuses,
Sois filhos todos vós do Deus Altíssimo!
E, contudo, como homens morrereis,
Caireis como qualquer dos poderosos!
Levantai-vos, ó Senhor, julgai a terra,
Porque a Vós é que pertencem as nações! (Sl 81,6-8)

            Um velho preconceito faz repetir que “decisão judicial não se discute, cumpre-se”. Tal bordão, na verdade, oculta dois pressupostos falsos e consequentemente perniciosos. O primeiro é o de que, acima dos tribunais humanos, não existe outra instância a que se possa apelar. Este primeiro pressuposto envolve, portanto, um ateísmo ao menos prático e também algo que podemos chamar de estatolatria, na medida em que reclama para os órgãos do estado uma obediência incondicional que só o mesmo Deus teria o direito de exigir. O segundo dos pressupostos é a tese kelseniana, tirada do direito talmúdico e não do direito romano, de que as normas, entre as quais se compreendem as sentenças e ordens judiciais, são simplesmente produzidas por um ato da vontade e, como tais, não podem ser julgadas pela razão. Como diria Michel de Montaigne, o pai do cepticismo moderno, «Les lois se maintiennent em crédit non parce qu’elles sont justes, mais parce qu’elles sont lois» (Essais, l. III, c. XIII).
            Ocorre que as normas, sejam elas gerais como as leis ou concretas e individuais como as constantes de contratos ou sentenças judiciais, são, em sua essência, atos da razão prática, juízos prudenciais, que podem ser mais ou menos corretos. De outra forma, não seria inteligível o princípio da fundamentação das decisões judiciais, insculpido no art. 93, IX, da Constituição Federal, que obriga mesmo o Supremo Tribunal Federal, instância máxima do poder judiciário brasileiro. Ainda que não sejam vinculantes os motivos da decisão, nem seja por seu valor que a decisão tenha força coercitiva, pela exigência da fundamentação a Constituição de certo modo submete os pronunciamentos judiciais ao julgamento (ao menos intelectual e moral) do público, que em muitos casos louvará o magistrado pelo brilho de sua prudência (ou melhor, jurisprudência) e em outros, oxalá sejam poucos, lamentará seus desatinos. O que importa considerar é que a liberdade de discutir as decisões judiciais é um direito decorrente do próprio princípio constitucional que impõe a sua fundamentação. Como todo e qualquer direito, não deve ser exercido anarquicamente, mas com ordem.
            Por outro lado, do fato de serem juízos prudenciais as normas das leis humanas e das sentenças judiciárias não se segue que se possa desobedecer a elas quando parecerem imprudentes ou mesmo quando houver soluções mais prudentes. A lei é uma regra de prudência, mas não é prudente apartar-se da lei, ainda quando ela for manifestamente imprudente, salvo em casos excepcionalíssimos, como os apontados pelo grande pontífice Leão XIII: «Seria crime negar obediência a Deus para dá-la aos homens; seria delito infringir as leis de Jesus Cristo para obedecer aos magistrados, ou violar os direitos da Igreja sob pretexto de guardar as leis de ordem civil. “Importa obedecer mais a Deus do que aos homens” (At 5,29). Essa resposta que outrora costumavam dar Pedro e os demais apóstolos aos magistrados, quando lhes ordenavam coisas ilícitas, devemos repeti-la todos os dias muito resolutamente em circunstâncias iguais» (enc. Sapientiae Christianae, n. 11).
            A questão do momento é o recente acórdão do Superior Tribunal de Justiça que, por votação unânime, condenou o padre Luiz Carlos Lodi, conhecido batalhador da luta pela defesa da vida no Brasil, a pagar indenização no valor de R$ 60.000,00 por haver, no ano de 2005, acionado o poder judiciário a fim de impedir um aborto. A decisão, mais que injusta, é duplamente absurda: em primeiro lugar, porque o padre não foi responsabilizado por um ato material que impediu ou perturbou o cumprimento de uma ordem judicial, como parece fazer crer o título da notícia veiculada sobre o caso no sítio eletrônico do STJ, mas por ter ajuizado uma ação. Por um segundo aspecto, porém não menos grave, a decisão é também absurda porque o aborto contra o qual o padre propôs a ação é tipificado como crime, não apenas na época do ajuizamento, como igualmente ainda hoje, de acordo com o sentido textual da lei penal. Efetivamente, no caso, a criança nascitura havia sido diagnosticada com a síndrome de body stalk, a qual não está prevista nas dirimentes (causas de isenção de pena) do art. 128 do Código Penal, nem autoriza a prática do aborto segundo o acórdão da famigerada ADPF n. 54, pelo qual o Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional o entendimento de que o aborto em caso de anencefalia do nascituro constitui fato típico, julgamento que foi prolatado apenas em 2012, portanto sete anos depois do fato pelo qual o padre Lodi foi condenado.
            A condenação do padre Lodi foi fundamentada na teoria do abuso do direito, sistematizada pelo jurista francês Louis Josserand e chamada pelo desembargador Vieira Ferreira de “extravagante invento” e “anárquica instituição” (Código Civil Annotado, Rio de Janeiro, 1922. pp. LVIII-LIX), que infelizmente tornou-se dominante na doutrina nacional e recebeu consagração final no art. 187 do Código Reale. Tal instituto contribui para dilatar a discricionariedade judicial, permitindo a criação de limites não previstos na lei aos direitos dos particulares. Observando com atenção, falar-se de abuso de direito constitui autêntico oximoro, tal como se diria de um círculo quadrado ou de uma reta curva. O direito romano, nesse ponto, era mais singelo, pois a ninguém responsabilizava pelo dano que a outrem resultasse do exercício do seu direito: qui jure suo utitur nemini facit injuriam (cf. D. 50,17,151).
            Segundo o acórdão do STJ, o padre Lodi abusou de seu direito de ação ao pedir medida judicial contra o aborto de criança com síndrome de body stalk porque avançou sobre direito alheio para impor suas particulares convicções religiosas sobre o aborto. Nas palavras do sexto parágrafo da ementa: «Nessa linha, e sobre a égide da laicidade do Estado, aquele que se arrosta contra o direito à liberdade, à intimidade e a disposição do próprio corpo por parte da gestante, que busca a interrupção da gravidez de feto sem viabilidade de vida extrauterina, brandindo a garantia constitucional ao próprio direito de ação e à defesa da vida humana, mesmo que ainda em estágio fetal e mesmo com um diagnóstico de síndrome incompatível com a vida extrauterina, exercita, abusivamente, seu direito de ação».
            Destaca-se, já na primeira observação, a manipulação argumentativa que esvazia o direito à vida do nascituro, logo reduzido a “particular convicção religiosa”, enquanto que o aborto de uma criança com síndrome de body stalk, que era fato típico como o é ainda hoje, vai recebendo a roupagem de “direito” ferido pela medida judicial proposta pelo padre.
            A invocação do Estado laico é aí totalmente impertinente, prestando-se apenas para desviar a atenção. A questão sobre a licitude do aborto é antes de tudo uma questão moral e aparentemente os prolatores do acórdão não sabem distinguir um argumento moral de um argumento religioso. A reprovabilidade moral do aborto independe de qualquer posicionamento em relação à religião. Como um amigo já disse antes de mim, para ser contra o aborto não é preciso ser católico ou professar esta ou aquela crença religiosa. Para ser contra o aborto basta ser gente, isto é, ser uma pessoa humana na definição aristotélica de animal racional. Os que dizem que são a favor da legalização do aborto porque não são católicos, mais coerentes seriam se dissessem: “Eu não sou gente, por isso defendo o aborto”.
            Não é das leis humanas, em última análise, que deriva o respeito à vida das pessoas, o qual, mais que um direito, é um dever da humana criatura e uma condição para a realização do progresso da cultura e da sociedade. Não obstante, a Constituição brasileira o consagra no caput de seu art. 5º, sem outra limitação que a do inc. XLVII, “a”, que autoriza a pena de morte no caso de guerra declarada. Em tempo de paz, nem mesmo o pior dos assassinos pode, no Brasil, ser privado de sua vida. Terá este mais dignidade humana que o feto que mal não fez a ninguém? Quem são esses humanistas que veem tanta dignidade no marginal e nenhuma na criança por nascer?
            O preceito constitucional protetivo do direito à vida, como as demais liberdades e direitos reconhecidos e assegurados pelo art. 5º da Constituição, devem ser interpretados segundo a sua maior amplitude, não apenas em razão do velho brocardo «odiosa restringenda, favorabilia amplianda», como também por força do § 2º do mesmo artigo, que ademais recepciona os tratados internacionais ratificados pelo Brasil, entre os quais a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), cujo art. 4º estipula que o direito à vida deve ser protegido pela lei desde o momento da concepção.
            Conforme a lição de Ylves José de Miranda Guimarães, «O direito à vida, como direito primeiro e fundamental dos demais e sem o qual estes seriam de todo inoperantes. Garantido, em ordem constitucional, o direito à vida, este há de ser respeitado em toda a legislação ordinária, infraconstitucional, sob pena de inconstitucionalidade e de consequente anulabilidade. E há de ser garantido desde a concepção, pois é pacífico cientificamente que a vida tem aí a sua gênese, ou melhor, é transmitida (...). O zigoto é rigorosamente um novo ser da espécie humana que se desenvolve paulatinamente, conforme o modelo genético que a caracteriza e faz parte de sua estrutura. O embrião é, pois, um corpo vivente, com individualidade e dignidade de ser humano pessoal (...). De acordo com esta noção, o nascituro é em si mesmo uma pessoa diferente do pai e da mãe, e assim sujeito de direitos naturais e inalienáveis, que devem ser reconhecidos e tutelados, como foram pelo preceito constitucional que veda, consequentemente, o nefando crime de aborto, por quaisquer de suas espécies provocadas, inclusive o chamado “terapêutico”» (Comentários à Constituição – Direitos e Garantias Individuais e Coletivas, Rio de Janeiro, 1989. pp. 16-7).
            Não há, pois, no sistema jurídico brasileiro, um direito ao aborto. O que há são as dirimentes do art. 128 do Código Penal, que isentam de pena o aborto (mas não o justificam) em dois particularíssimos casos, e a decisão da ADPF 54, em que o STF, ao arrepio do sentido autêntico da Constituição, excluiu da tipicidade o aborto praticado em caso de anencefalia fetal. Ocorre que a mencionada ADPF foi julgada apenas em 2012, sete anos depois, portanto, dos fatos pelos quais o padre Lodi foi condenado.
            Ademais, ainda que se conceda que o STF não contraveio a Constituição ao excluir a tipicidade do aborto em caso de anencefalia, não se pode imputar ao padre Lodi a prática de abuso do direito de ação porque a própria Lei n. 9.882/1999, que regula o processo da ADPF, estabelece que o ajuizamento dessa ação pressupõe relevante controvérsia constitucional, especialmente para leis, como o Código Penal, anteriores à Constituição de 1988. Ou seja, antes do julgamento da ADPF 54, em 2012, não se poderia dizer, como fez o acórdão que condenou o padre Lodi, que havia com certeza um direito ao aborto em caso de inviabilidade da criança, pois o próprio processamento da referida ADPF indicava a existência de profunda controvérsia sobre o assunto. E tanto a matéria era controversa que o Tribunal de Justiça de Goiás concedeu a liminar pedida pelo padre Lodi para impedir o aborto. Como pode haver abuso de direito quando se provoca o Judiciário a pronunciar-se sobre matéria juridicamente controversa?
            Por outro lado, no que toca ao abuso do direito de ação, a jurisprudência nacional é uníssona em exigir, para a sua caracterização, a demonstração do dolo ou má-fé do responsável. Entretanto, apesar de discorrer extensamente sobre os alegados sofrimentos do casal que foi impedido de praticar o aborto, o acórdão do STJ, que condenou o padre Lodi, é completamente omisso em relação aos elementos fácticos que comprovariam sua má-fé ou dolo, ou ainda a sua culpa (negligência, imprudência ou imperícia). O acórdão analisa detidamente os danos provocados pelo suposto abuso de direito e o respectivo nexo causal, mas passa em silêncio sobre o dolo ou culpa do réu. O padre Lodi foi condenado por responsabilidade objetiva!
            Dando uma interpretação latíssima à decisão da ADPF 54, o acórdão que condenou o padre Lodi pretende haver introduzido no direito brasileiro um novo requisito para a aquisição da personalidade civil, não previsto na lei: a viabilidade. Aliás, um dos títulos do acórdão é explícito no intento de ampliar o alcance da decisão da ADPF 54, dizendo literalmente: «a extensão do entendimento da ADPF 54 a outros casos de má-formação fetal que inviabilizam a vida extrauterina». No entanto, a opinião comum e constante da doutrina é a de que a legislação brasileira rechaçou a viabilidade como requisito para a aquisição da personalidade civil. Segundo o magistério de Washington de Barros Monteiro, «A lei civil pátria afastou as questões relativas à viabilidade e forma humana. Se a criança nasceu com vida, tornou-se sujeito de direitos, ainda que a ciência a condene à morte pela precariedade de sua conformação. Viável ou não, o infante reveste-se de personalidade» (Curso de Direito Civil 1 – Parte geral, 39ª ed., São Paulo, 2003. p. 65). E também Maria Helena Diniz, «O nosso Código Civil afastou todas essas hipóteses, que originavam incertezas, dúvidas, pois, no seu art. 2º não contemplou os requisitos da viabilidade e forma humana, afirmando que a personalidade jurídica inicia-se com o nascimento com vida, ainda que o recém-nascido venha a falecer instantes depois» (Curso de Direito Civil Brasileiro 1 – Teoria geral do direito civil, 21ª ed., São Paulo, 2003. pp. 179-80).
            Para completar a série de disparates, o acórdão que condenou o padre Lodi invocou um direito inexistente no sistema jurídico brasileiro: “o direito à disposição do próprio corpo”. Pelo contrário, o direito ao corpo é um direito da personalidade, logo intransmissível, irrenunciável e indisponível. Além disso, o art. 13 do Código Civil proíbe os atos de disposição do próprio corpo, salvo por exigência médica, e o art. 14 os permite apenas para depois da morte, desde que a título gratuito. O art. 199, § 4º, da Constituição, por sua vez, veda expressamente a comercialização de órgãos, tecidos ou substâncias humanas. Além do que, é claro, o corpo da criança não faz parte do corpo da mãe, mesmo vivendo dentro do útero.
            No fundo, o que parece é que o acórdão que condenou o padre Lodi intentou menos indenizar o casal ou mesmo perseguir individualmente o sacerdote do que intimidar qualquer pessoa que acione o Judiciário contra a realização de aborto. O segundo dos títulos do acórdão é bastante explícito quanto a isso: «Da possibilidade de responsabilização de pessoa que faz uso de remédio constitucional para sustar a interrupção de gravidez judicialmente autorizada». O acórdão abre um precedente nefasto para sujeitar qualquer pessoa que simplesmente pedir uma medida judicial contra um aborto a pagar, dez anos depois, uma elevada quantia em dinheiro.
            E aqui encerramos nosso comentário sobre essa decisão teratológica, duplamente absurda.

Rodrigo R. Pedroso, Advogado graduado pela FD/USP. Mestre em filosofia pela FFLCH/USP. Procurador da Universidade de São Paulo. Membro da UJUCASP (União dos Juristas Católicos de São Paulo) e do Centro de Estudos de Direito Natural “José Pedro Galvão de Sousa”.



terça-feira, 25 de outubro de 2016

NOTA SOBRE MINHA CONDENAÇÃO POR DANOS MORAIS NO STJ

Nosso Bispo Diocesano, Dom João Wilk, estando com a saúde fragilizada, pediu-me que emitisse uma nota à imprensa acerca da minha condenação por danos morais que sofri pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por ter impetrado um habeas corpus em favor de Geovana Gomes Leneu, uma criança deficiente, portadora da síndrome de “body stalk”, condenada ao aborto por uma sentença de um juiz da 1ª vara criminal de Goiânia.
Impetrei o habeas corpus em 11 de outubro de 2005, sem muita esperança de obter êxito, até mesmo porque quando se tem notícia de autorizações para abortamentos eugênicos, muitas vezes eles já ocorreram. Não me permitiram fotocopiar aos autos do processo, de modo que tive que escrever a peça do habeas corpus a mão, em uma folha avulsa. A suspeita de fracasso foi confirmada por uma notícia (que depois decobri ser falsa) publicada pelo jornal O Popular no dia 15 de outubro de 2005):
“O desembargador Aluísio Ataídes de Sousa, em decisão de gabinete, suspendeu ontem alvará judicial que autorizou aborto de feto com síndrome de Body Stalk, em gestante de 19 anos. A decisão, entretanto, perdeu objeto, pois o procedimento já foi realizado
Na verdade, a liminar chegou a tempo de salvar Geovana da morte. Ela estava para ser abortada no dia 14 de outubro de 2005, quando chegou ao hospital a decisão liminar do Desembargador Aluízo Ataíde de Souza sustando o aborto e cassando a sentença que o autorizara.
Os pais da criança voltaram a Morrinhos, sua cidade, sem que eu nada soubesse sobre o ocorrido, sempre acreditando na veracidade da notícia do Jornal O Popular.
Esse equívoco foi lamentável. Se eu soubesse que Geovana havia sobrevivido e que seus pais estavam em Morrinhos, sem dúvida eu teria ido visitá-los, acompanhá-los durante a gestação, oferecer-lhes assistência durante o parto (como fizemos com tantas outras gestantes) e, em se tratando de uma criança com risco de morte iminente, batizá-la logo após o nascimento. E se ela falecesse, para mim seria uma honra fazer suas cerimônias fúnebres acompanhando a família até o cemitério.
Quando eu soube de tudo, Geovana já havia nascido em 22 de outubro de 2005, vivido 1h45 e morrido sem que ninguém se lembrasse de batizá-la. De qualquer forma, ela recebeu um nome e foi sepultada, destino bem melhor que o de ser jogada fora e misturada ao lixo hospitalar.
Meu Bispo aprova minha atitude e lamenta a condenação do Superior Tribunal de Justiça. Qualquer cidadão pode e deve defender uma vida ameaçada de morte, usando para isso os meios legais e processuais a seu dispor, entre eles o habeas corpus. A condenação do impetrante de um habeas corpus por danos morais é teratológica, pois, se o Tribunal ou Desembargador concedeu a ordem, não foi por “obediência” ao cidadão, mas por verificar que, naquele caso, o juiz estava de fato agindo com ilegalidade e abuso de poder. Por que não processar por “danos morais” o Desembargador que expediu a liminar?
O pedido indenizatório, negado em primeiro e segundo grau, foi agora surpreendentemente acolhido no STJ. Em outra época, porém, essa Corte já se notabilizou pela defesa das crianças deficientes por nascer, ao cassar por unanimidade, uma decisão do TJRJ que autorizara um aborto de um bebê anencéfalo (HC 32152). A relatora do histórico acórdão foi a Ministra Laurita Vaz, que hoje preside o Superior Tribunal de Justiça.

Anápolis, 25 de outubro de 2016.
Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz

Presidente do Pró-Vida de Anápolis

Mais lidos